sábado, maio 26, 2007

Eu Odeio Criança

Dedicado à minha irmã,
que compartilha comigo desses conceitos polêmicos,
mas incontestáveis.

Eu Odeio Criança

Eu odeio criança como odeio o MST. Não! Não vá me julgando antes de conhecer meus argumentos. Odeio as crianças, em geral, apesar de querer ter um filho antes que o sertão vire mar. Claro que tem umas que salvam. Mas a maioria é odiosa. Eu já fui criança, é claro. Mas a culpa não é minha. Além do que, as crianças do meu tempo de criança eram bem mais suportáveis do que as de hoje. A culpa de serem odiosas também não é das crianças.

O mundo está como está por causa dos programas infantis. Os desenhos antiqüíssimos, daqueles que o Pica-Pau tinha as pernas amarelas e cheia de dobras, são escolas do crime e da pancadaria. O Leôncio, leão-marinho (com pernas (!)), e o Zeca-Urubu são esfrangalhados pelo pássaro demoníaco com explosões, machados, motos-serra e afins. Devia ser o programa preferido de Bush Jr.

Com o passar do tempo, surgiram apresentadoras de programas infantis. Tudo gente do bem. Ex-atrizes pornô, com 1 milhão de Playboys vendidas no currículo; ficam com figurinos sumários fazendo micagens para as crianças, de todas as idades.

O único mérito do que se passa hoje na TV é terem conseguido a proeza imensurável de superar, em baixeza, os programazinhos do meu tempo. Num dos canais, toda manhã, um casal de crianças ficam aterrorizando o mundo com suas piadinhas e brincadeiras de ameba em coma. O menino é japonês de segunda a quarta, no resto da semana ele é descendente afro ou indígena, impossível discernir. É feio, contrariando a raça – seja qual for. A menina veste-se como adulta e tem uma voz quebra-cristal de fazer surdo pedir exílio no Cadeião de Ramos. Ambos pulam, gritam e se divertem, a valer. Alô, Ministro do Trabalho! Trabalho infantil não era crime! Essa história de apresentadores mirins não acaba bem! Escutem o que eu to falando! Britney e Justin estão aí para comprovar.

Ah! Que saudade que tenho dos meus tempos de criança telespectadora. Fui viciado em TV Cultura. Os programas eram bons. Exceto as vinhetas de abertura, cheias de mensagens subliminares. A do Castelo Rá-tim-bum mesmo só faltava aparecer a Gretchen com a complexa coreografia do “Conga, la Conga”: “BUM-BUM BUM-BUM, Castelo Rá-tim-bum...”. Que horror!

Outro ótimo, mas que pecava na abertura era o ‘Co-co-ri-có’. Diz o jingle: “O Júlio na gaita e a bicharada no co-co-coral...” O que é isso?! Júlio seria aliciador de uma boate GLBT com direito a couvert artístico das bichas? Valeu a intenção, mas...

Outro matador, mesmo que culposo, da inocência infantil atualmente são os brinquedos. Brinquedos de meninos são monstros ou aqueles carrinhos de velocidade inalcançável que fazem acrobacias de qualquer natureza. Não importa quanto tempo passe, quando o menino pegar o carro do pai irá atropelar, ultrapassar, tirar rachar... Tudo para satisfazer sua ganância por velocidade plantada nos verdes anos.

Já as meninas têm as bonecas. De pano? Não. A indústria não incentiva a inclusão de portadores de necessidades especiais. Em vez disso, as bonecas mudinhas já não servem mais. Precisam ser essas que falam coisas terríveis. Exemplo: “Me dá um abraço!?” ou “Quero mamar!”, ainda “Vamos dormir?”. Perceberam? Está tudo muito claro, senhores. Crime de incitação à concupiscência, aí mesmo na barriga da boneca da sua filha.

A Barbie então, nem se fala. Criminosa de deixar Carmem Sandiego no chinelo. Nunca vi uma Barbie frentista; “Barbie empregada doméstica” existe? Não! Não existe! Sabe por quê? Porque a missão diabólica daquela loira é corromper as crianças com os maliciosos ideais americanos de consumismo e materialismo a qualquer custo. Barbie tem um trailer. Barbie tem uma BMW Z3. Barbie tem um iate. E eu nunca a vi trabalhar honestamente. É caucasiana; crime bárbaro de preconceito racial. Achavam pouco e criaram sabe quem? Isso mesmo, o Ken. Ken turve na cabeça das meninas a realidade dos ideais másculos e latinos. Ken não assiste futebol. Ken não é corintiano. Ken não sabe dirigir, fica sempre do lado do carona nos carros rosa-choque da Rainha do Capitalismo. Ken usa blusas de frio enroladas no pescoço e bermuda cáqui. Ken deveria ser o papai da história. No entanto, acaba sendo um boa-vida como a ‘esposa’, totalmente afeminado e virtualmente um denegridor de nós, homens.

O mundo corre sérios perigos. O aquecimento global está aí (como esteve a gripe-aviária, o ano 2000 e o chupa-cabra, enfim só pra vender jornal) e as crianças de hoje chegarão em 2050 apertando a fivela dos cintos e gritando “hora de mofar” pra enfrentar a corrupção e a fome na África. Isso não pode continuar.

A culpa é, todavia, nossa. Somos nós, adultos, quem estamos construindo pouco a pouco monstros execráveis (como aquela menininha do Programa Raul Gil) em formatos pockets. E poderemos reverter a situação, sem a mesma violência com a qual seremos todos exterminados por eles daqui trinta anos. Desligue a TV. Mande a Barbie ver o que bom numas férias infinitas na Coréia do Norte. Dê um LP, sim Long Play, de James Brow (com 'Sexy Machine') para seus filhos. Incentive a leitura de clássicos da língua portuguesa. E se não fizer, vou ligar no programa para crianças daquela loira da Rede Vida, e na hora do artesanato!!!

Dia de Mudança

Dedicado a quem, assim como eu, identifica-se com os legionários versos:
“Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”.


Dia de Mudança

Ainda não eram oito da manhã. Muito frio e o Sol se escondia nas nuvens quando apontou, no começo da Rua dos Jacarandás, estreita e sem qualquer tipo de pavimentação, um caminhão pequeno – e até melancólico –, repintado de azul e branco. Digo ‘repintado’ pois é certo que não possuía sua pintura original; era tão velho que não se discernia o modelo e nem mesmo a montadora. Estava muito bem conservado, feito um automóvel de novela das seis, mas a vagareza e os ruídos diziam qualquer coisa negativa sobre o motor.

O carro passou por onde eu estava e chegou a uma casinha pouco mais a frente. A menor casa da rua, cheia de árvores no vasto terreno frontal. O caminhão parou e abriu a sua cercazinha traseira (admito que caminhões – tal quais os olhos – não têm cercas; porém, declaro-me ignaro da nomenclatura de acessórios e itens que um caminhão possa ter; então, fica ‘cerca’ mesmo). Do alpendre, gritou uma menina gorda: “O Caminhão chegou!”. Sim. Óbvio.

Desceram do automóvel dois homens. O primeiro mais velho e magro, vestido sem qualquer fagulha de zelo. O segundo bem mais jovem, pouco mais asseado que o primeiro, mas com a beleza jovial – uma beleza simples, bem simples; até ‘simplória’, eu diria.

Ambos iniciaram o carregamento. Pouco a pouco os pertences da menina gorda mais a outra pessoa para quem havia gritado eram expostos ao léu para serem levados até... Uma nova casa, naturalmente.

Móveis simples. Não que eu tenha reparado. Mas era inevitável. Pedaços aleatórios de um roupeiro. Um sofá bege (a cor que tenho ódio fulminante, apesar de me identificar com Flicts, de Ziraldo) que é sempre aderido por parecer não sujar muito – ou como se diz em minha saudosa terra natal, ‘por não ser ‘sujadô’’. Outras peças de madeiras e os nunca faltosos: fogão, geladeira e botijão.

O fogão (palavra engraçada: fogo, foguinho e...?) parecia ter sido comprado na Era Vargas. Bege (!) dos lados e preto na frente; cores impensáveis para nossa era de cozinha ‘toda-branca’ ou as ultra-modernas, platinium. Pendurado no fogão, a mangueira mezzo incolor mezzo amarela, com um ferro na ponta. Não faltou o botijão. Daqueles azuis. Um azul brilhante. Botijão bonito! Ganhou do rapaz carregador.

E se o fogão era de Getúlio, a geladeira era de Costa e Silva pra lá. Duas portas. Pezinhos arredondados, iguais aos que é vendido pela revista Hermes. O rodapé já não era mais, ficara no lugar aquele buraco todo ‘teia-aranhado’ (gosto de inventar palavras, é um esporte interessante; melhor que Sudoku).

Quanta exposição! Mudanças é uma devassa da vizinhança nos nossos particulares. Uma moradora da rua atravessou o caminhão vasculhando com os olhos tudo o quanto lhe foi possível, antes de entrar na sua casa. Ao passar por mim, sapequei um olhar de repreensão pela sua curiosidade incontida. “Que bisbilhotice medíocre, hein?!”, eu lhe disse com um ligeiro cerrar dos olhos. “E você?!”, ela me respondeu com um quase imperceptível arquear das pestanas.

- Bom dia, Fábio.
- Bom dia, Graça.

Hora de fechar a... cercazinha do caminhão. Momento delicado. Crucial até. Sempre há miudezas a colocarem no transportador. E houve. Uma bola suja. Alguns banquinhos de petróleo. Um tambor azul. Quatro almofadas. E galinhas. Aliás, perdoem-me! Não. Não havia galinhas! Sim, elas estavam lá mas estão aqui sujando minha crônica, com esse ar de mentira e galhofa, naturais aos galináceos. Pensarão, com certeza, os leitores que exagero ou até mesmo troço da vizinha. É preciso mentir para soar verdadeiro. Portanto, esqueçam as galinhas – eram três. Retiremo-las daqui. Não havia galinhas.

Como dizia, encerrou-se o carregamento. A senhora – mãe da gorda – cerrou o portão tentando esconder no rosto a gravidade do acontecimento. Mudar de casa é sempre uma ocasião de solenidades. Boas ou más. Boas e más.

O moço e o velho, para arrematar o carreto, passaram uma fina corda por entre tudo, apesar de que ficamos todos com uma impressão de que nada estava seguro ali em cima. Por via das dúvidas, o rapaz juntou-se às galinhas, digo, aos objetos na caçamba, para servir de culpado.

Da janela de sua casa, Graça olhava o caminhãozinho sumindo no começo da descida lá na frente. Nossos olhos se entreolharam e tivemos subitamente uma vontade lúgubre de correr atrás daquele veículo para sabatinar nossos ex-vizinhos. “Para onde vão? Por que foram? O que será da casa vazia?”

Assustei quando, sem que eu esperasse, Graça gritou-me lá de cima com um sorrisinho brejeiro:

- Eles vão precisar voltar.
- Sério? Por quê?
- Uma galinha caiu.

Os Inventores

Para dois generosos e valiosos amigos,
César Dias e Cremilson Silva.
Dedicado as inesquecíveis Marilda e Susi.
Saudades, muitas saudades.



Os Inventores

Diz a lenda que muito, muito antes de Deus criar o humanos, esteve preparando o planeta Terra com muito, muito cuidado.

Após criar e dar forma à esfera, resolveu o Divino encher com água os largos e profundos canais. Chamou a si o anjo Guímel e disse:

Designo-lhe responsável por longe ou perto buscar
Águas para abastecer e esta esfera adornar.

Guímel sentiu-se extasiado por receber uma ordem do próprio ’El Shad·daí. Saindo da corte celestial ouviu a voz de trovão realçar um ponto importante:

Estás livre para ir quando quiser,
Mas tem 24 horas para muitas águas trazer.

Imediatamente, um grande relógio começou a girar nas horas e nos minutos, regressivamente. “23h59min.” notou Guímel e apressadamente saiu.

Rodou galáxias e mais galáxias até encontrar outra esfera azul, com muita água e uma grande fonte cósmica de água. “Achei!”, pensou. “Como transportá-la?”, era a questão. Neste momento passava por ali o sábio anjo Lâmede. Guímel lhe disse:

Lâmede, prezado senhor,
Preciso todas essas águas para a Terra levar –
Águas sem cheiro, peso e cor –
No entanto, parece impossível com tudo isso lá chegar.

Lâmede olhou compassivamente para os olhos de Guímel, fez-lhe um sinal para que esperasse e voou para longe. Guímel consultou o relógio. “19h50min”.

Lâmede então foi rapidamente até um canto do Universo. Puxou com força um pedaço do pano mágico que resguardava e determinava os limites do Universo. Dobrou o grande pano e voltou para o planeta em que estava o outro anjo e disse:

Longe, muito longe onde não há vida nem barulho
Busquei este mágico tecido para as águas juntar,
Num único e grandioso embrulho.

Tentaram em vão. Difícil tarefa para os dois anjos. Segurar o tecido mágico e ainda colocar todo aquele líquido dentro. Por fim, desistiram. “Impossível”, diziam enquanto notavam a virada do relógio: “14h05min”.

Passando por perto e atraído pelos rumores, os anjos Nune e Tau chegaram perto. Guímel chamou-os:

Oh, Nune e Tau, vossa ajuda nos será mui importante;
Devemos levar toda essa água para um novo planeta distante.

De pronto, Nune e Tau aceitaram. Após pensarem um pouco ficou decidido que cada anjo – Nune, Tau, Lâmede e Guímel – pegariam em cada uma das quatro pontas do tecido mágico e transportaria o líquido assim, feito uma grande piscina ambulante. Guímel sentiu-se profundamente aliviado. Com receio, consultou o relógio percebendo quanto tempo havia passado, sem que notasse. “09h26min”.

Estava pesado, muito pesado. Mas com esforço mútuo, os quatro prosseguiam atravessando galáxias para chegar até Terra. Conseguiam rir, às vezes, da situação em que estavam. Se um se mostrasse abatido e cansado, trocavam de postos para aliviar e fortalecer o outro.

Um problema não estava previsto. Quando passavam próximos a uma poderosa fonte de nitrogênio, toda a água se congelava e era completamente impossível prosseguir. Era preciso voltar e recomeçar evitando o caminho do frio. Todavia, com a mudança de trajeto passavam próximos a grandes e tórridas estrelas maiores, muito maiores que o Sol que vemos hoje e toda a água virava vapor e era, outra vez, necessário voltar ao Planeta Fonte e recomeçar a tarefa.

Enquanto pegavam novamente água na Fonte, Guímel olhou frustrado para o relógio. “05h12min”. “Não será possível!, se desesperava. Outra vez a água congelará ou evaporará!”

Neste momento cruzou três lindas luzes pelo céu do Planeta Fonte. Era Tsadê carregando dois objetos que encontrara numa galáxia do infinito, uma grande bola de fogo e uma pequena esfera frígida. O anjo Tau pensou rápido e chamou Tsadê para perto, dizendo:

Eis que nossa laboriosa missão está sendo, de toda, fútil,
Mas estes poderosos luzeiros nos serão muito úteis.

Tsadê aceitou a oportunidade de ajudar os outros quatro anjos. Funcionaria assim. Enquanto passassem por uma estrela cheia de calor, Tsadê passaria aquela esfera gélida pela improvisada piscina de tecido, que transportava as águas, para evitar que ela se evaporasse. Por outro lado, pelo tempo que estivessem passando perto das grandes e intensas fontes de frio do Universo, Tsadê usaria a grande bola de fogo para controlar a temperatura das águas que encheriam a Terra. A grande esfera amarela, de tão forte, não se apagava com toda a água. “03h09min”. Era preciso serem rápidos.

E deu certo. Passaram celeremente pelas fontes de calor e frio. Tsadê exerceu bem sua função. Ele olhava com carinho para os outros quatro anjos. Sentiu-se feliz. Além disso, encantava-se com o grande tecido mágico; escuro como o Universo, apesar de que um dos lados, o que esteve em constante contato com a água, ter desbotado gravemente.

“Missão cumprida”, pensou Guímel, satisfeito e orgulhoso, ao avistar a Terra; e ainda faltavam vários minutos para vencer o prazo dado pelo Senhor do Universo. “01h04min”.

“Ah! Que danação!”, pensou Nune e avisou:

Ah! Eis que uma chuva de meteoros nos atingirá
O tecido virará peneira e água se escoará!

Os cinco anjos se protegeram como puderam da terrível chuva. No fim, que decepção! Nem um pingo de água sobrara e o tecido estava todo esburacado. Guímel olhou o relógio. “00h31min”.

Obviamente, não daria tempo de recomeçar a luta – buscar o tecido, a água e a voltar à Terra –, e sentiram-se humilhados ao escutar que ’El Shad·daí os chamava.

Com as cabeças baixas e as asas arqueadas, entraram um a um, na Corte Suprema Celestial. Guímel, Nune, Tau, Lâmede e Tsadê.

Nem era preciso dizer, mas ’El Shad·daí dirigiu-se aos cinco:

Bem sabeis vós que um prazo fora estabelecido,
Não cumpristes, é a verdade.
Contudo, o tempo não esteve de todo perdido,
Vi que, em 24 horas, vós criastes um sentimento novo, a amizade.

Seus semblantes se iluminaram um pouco. Realmente, apesar do fracasso, notaram uma ligação extra-natural que haviam desenvolvido entre si, durante as 24 horas que estiveram unidos.

Como recompensa pela descoberta, ’El Shad·daí, compreensivo e benigno, designou os cinco para uma tarefa simples, mas admirável. Quatro anjos, do grupo, estenderiam aquele grande tecido para proteger o novo Planeta da claridade e oscilações de temperatura do Universo. Por 12 horas, ficaria a parte clara virada para a jovem esfera, enquanto Tsadê passearia com a bola de fogo pelos céus. Por outras 12 horas, viravam o tecido, que deixavam o planeta no escuro (apesar dos vários furos que permitiam escapar luzes cósmicas), e Tsadê passaria segurando seu escudo gélido pelo firmamento.

E até hoje, ainda é possível encontrá-los na mesma função. De felizes, fazem espetáculos a cada ‘virada’ da cortina da noite. Cada vez mais íntimos e familiares, sentem-se felizes por terem descoberto esse misterioso sentimento, que se caracteriza por amor – com muito ou, às vezes, sem respeito algum, mas ainda assim, amor, dos mais verdadeiros e puros que é possível existir.

Os Inventores da Amizade são até hoje os Guardiões do Dia e da Noite. Por isso que esse sentimento não é afetado pelas viradas do tempo, como todos os outros sentimentos do mundo.

Afinal, o planeta é mesmo cheio dessas coisas e seus milagres naturais, previamente estabelecidas por ’El Shad·daí. Com o dia e a noite, os amigos também se distinguem por serem elementos simples... Naturalmente simples e simplesmente inevitáveis, essenciais e inesquecíveis.

domingo, maio 20, 2007

Caraguatatuba



A lua que faz brilhar o teu olhar
E eu fico aqui tentando encontrar
A amplitude dos sonhos
A história dos mundos
Que foge o pensamento
Na charada do tempo
Leste, Oeste pro Norte eu vou levando
Vou jogando o som no ar
Esperando o amor chegar na minha vida

sábado, maio 19, 2007

Poema das Seis da Tarde


Correm os passos
Correm as rodas
Correm as mãos
Correm pra casa
Correm pros abraços
Correm aos beijos
Correm aos gritos
Correm para amar
Pra descansar
Correm pra correr
Correm de sofrer
Com as mãos para trás
Com as mãos juntas
Correm...

Com o sorriso largo
Com os olhos caídos
Com os olhos de sono
Com a boca amargurada
Com os olhos fixos no futuro
Com os olhos presos no passado
Correm...

Com as calças apertadas
Com a beleza e a blusa folgada
Com roupas de nada, de moda
Tomando uma coca
Sedentos de água
Sedentos do que já sabem
Sedentos do que nunca viram
Correm...

Correm juntos
Se-pa-ra-dos
Pra mesma direção
Por caminhos opostos

Corro eu, ainda, do destino criança
Que não sei se por proteção ou vingança
Faz-me correr para ti
Enquanto tu corres de mim.

segunda-feira, maio 14, 2007

Confissões & Profissões


Vou me formar em Direito. Processar seus olhos que roubam minha paz. Incriminar seu corpo que invade meus sonhos. Defender você de outras paixões.

Vou fazer Medicina. Abrir-lhe o peito e tatuar meu futuro nos cantos do seu coração. Extrair seus amores e transplantar teus carinhos para estancar minhas ambições.

Vou me formar em Engenharia. Desenhar planos e formular equações para cunhar nosso encontro. Arquitetar um local seguro para guardar seu amor e proteger suas canções.

Vou fazer Odontologia. Decifrar o código secreto e mágico que escondes no sorriso. Examinar sua boca e diagnosticar as sensações e emoções únicas atingidas pelos lábios que tocam os seus.

Vou me especializar em Pediatria. Procurar, encontrar e desatar a criança que tu carregas no peito. E junto com ela, atravessar campos, escalar montanhas, mergulhar nos mares e reinventar o mundo, só pra chamá-lo de nosso.

Palavras Desenhadas



Desenho uma palavra no papel:
AMOR – é a milionésima parte
De tudo o que esta palavra pode causar
Quando desprendida, alcança o céu,
A terra e o mar; é o simples verbo amar.

Desenho mais letras nesta folha:
DINHEIRO – pouco, se escrever
As coisas todas que ele pode comprar,
E as outras tantas que ele faz perder
Neste mundo grande, de tão pequeno.

HUMANO, é agora meu desenho.
Primeiro, descobridor de terras.
Depois, o contador das eras.
Então, construtor de pontes
Agora, conquistador das trevas,
Principal personagem da novela ‘amor’
Dono do dinheiro, do mundo e de pedaço do céu.
O humano que derruba as árvores pra me vender papel.

sábado, maio 12, 2007

A vida é uma novela


Acordei as sete pra uma entrevista de emprego pra uma loja que vai abrir aqui. Nem sei qual. Sei que tinha umas duas mil pessoas, parecia fila do ‘Ídolos’. Tanta gente desempregada. Um rindo da desgraça do outro, entre os dentes. Se eu fosse o único ocioso do mundo, tudo bem. Mas tem muita gente legal tirando rapadura de tijolo pra sobreviver. Isso me deprime pra caramba. Por que a vida não é como uma novela? Onde apesar dos pobres serem pobres, pelo menos trabalham na Globo e aparecem no vídeo show de vez em quando? Falando em novela...

Aí descobriram no meu caderno de levar na reunião que eu tenho (tinha) uma lista de coisas pra fazer quando a Aline voltasse.

Aí riram e ri tanto que até chorei. Ri, ri e de repente uma lágrima cai. Que isso? Putz, to chorando. Droga.

Aí viram que uma das coisas era assistir um monte de filmes, ir a tal e tal lugar.

Aí eu tive que explicar que Aline é minha única referência de uma relação romântica com futuro e que "Aline voltar" deve ser entendido como eu gostar de alguém de novo (e que goste de mim, Céus!)

Aí eu pensei bem e vi que eu não sou nada (imperfeitos e pequeninos, como diz o outro) e que minha vida anda uma canoa furada. Não dá pra ‘relacionar’ assim.

Aí eu expliquei que era canoa furada porque eu tinha abandonado outro curso, outro emprego e estava à mercê da passagem dos dias e triste com a morte dos cachorros.

Aí eu expliquei que mataram os cachorros da rua, e que isso me afetou profundamente.

Aí me disseram que era o desemprego - a gente fica mais sensível às trivialidades da vida. Pô! "Trivialidade"? "Aí, tá vendo?!".

Aí eu parei no camaroeiro (praia calma com dezenas de barquinhos de pescadores na água) e tive uma súbita sensação de que a vida era uma grande novela.

Aí eu pensei isso porque o cenário era lindo; eu era mocinho bonzinho (!); e que pelo que tá meu ano chinês só pode ser os últimos capítulos, onde tudo dá errado.

Aí eu imaginei que era isso mesmo e que, enfim, na sexta feira eu iria tropeçar numa mala cheia de dinheiro pra pagar minha faculdade, casa, carro e cocas-cola mil.

Aí eu concluí que na sexta feira também eu iria ver Aline me procurando no Fantástico.

Aí me falaram que o Fantástico é no domingo.

Aí eu disse que novela é novela, inferno!

Aí eu disse que reuniria todo o elenco pro nosso casamento e acabaria com ela grávida.

Aí me lembraram que eu sou estéril.

Aí eu falei que a novela era do Manoel Carlos, e a Regina Duarte era médica e chamava-se Helena, DOutorrrrra em infertilidade, apesar de morar no Leblon e ser inimiga da Martha.

Aí me perguntaram o que iria acontecer aos vilões.

Aí eu olhei pros barquinhos no mar e pro vento frio que chegava à praia e tive uma alegria gratuita de lembrar que minha vida não tinha vilões humanos e que, se os tem, não os encaro assim.

Aí me falaram que se não tinha vilão a minha vida não era novela, então.

Aí eu disse que a partir de agora estava mais voltado pro desenvolvimento espiritual e que essas coisas de amor pra mim é pior do que Cachaça de Cobra.

Aí minha mãe falou que falar "Aí" é ridículo. "Deve-se dizer "então"".

Então vamos pros comercias.

"Sei que chegou a hora
Não tem mais solução
Esse é o fim do jogo
Fim da nossa canção"






Dona Maria Ferreira




A polêmica começou hoje a tarde quando minha mãe disse que o Joseph Ratzinger parecia minha avó materna. Isso é um desrespeito para com a falecida.

Pelo que vi entre os soldados suíços e os vidros blindados, Bento XVI é um senhor amabilíssimo. Sorridente, voz calma, inteligente. Queria conhecê-lo pessoalmente. Apesar de tudo, nem se compara com Dona Maria Ferreira.

Se estivesse viva, estaria comemorando 84 anos. Minha avó não era católica como todas as outras avós do mundo. Tenho poucas lembranças dela. Sei que era nordestina (como tudo o que eu amo) de Garanhuns, no Pernambuco. Na velhice, morava na Rua 3, casa 314, ou algo bem próximo disso. Morava sozinha e solitária. Quando chegávamos lá, dona Maria primeiro espiava por um pequeno buraco no vidro da porta da frente. "Somos nós!". O portão, apesar da monotonia irritante da pequena Colina, estava sempre fechado à cadeado.

Vinha ela, andando sem pressa, às vezes esboçando um sorriso discreto brincando no seu rosto branco e iluminando seus olhos amendoados. Abria com certa dificuldade o portão e recebíamos. À minha mãe com beijos e comprimentos discretos. Na minha vez, um abraço apertado e um beijo - era quase uma violação -, coisas da misteriosa relação adultas-crianças.

A casa era pequena e escura, mas bem arrumada. Uma televisão numa estante preta - estranhamente preta, já que hoje não se acham mais móveis totalmente pretos. Além do seu quarto, Dona Maria também tinha um quarto de costura. Era costureira de ofício, obviamente.

Se eu fechar os olhos, ainda hoje, posso sentir o cheiro daquele cômodo. É um misto de máquina de costura, tecido novo e o perfume da minha avó. Cheiro acolhedor. Cheiro afável. Cheiro de vontade de puxar um lençol de algodão e cochilar de felicidade. Cheiro da minha avó.

Nesse quarto ainda, havia numa das paredes um retrato do Gugu - pôster, como chamamos hoje. Gugu irritava. Não sei explicar porque o Gugu ficava lá dependurado, o tempo todo sorrindo, numa felicidade constante e invariável. Talvez pela convivência diária com o bom humor de minha avó.

Bom humor e mau humor também, já que ninguém é perfeito. Maria reclamava sempre da vizinha. A casa ao lado tinha muros altos e um portão todo fechado. Não lembro de tê-la visto (a vizinha), mas minha imaginação infantil pintava-a como algo bem próximo do Diabo, tamanha eram as reclamações que ouvia. Mas o mau humor e a frigidez com que nos tratava em algumas ocasiões eram frutos da vida difícil, dos poucos homens que teve e da solidão no fim da vida... Solidão. Ninguém merecia solidão. Menos ainda minha avó.

Ela vinha a nossa casa, as vezes, no caminho para o centro da cidade. Do vidro embaçado da sala de casa, via seu vulto leve parar em frente o portão e abri-lo. Com seus costumeiros vestidos de corte simples e bem estampados e sua marca registrada: o perfume. Fortíssimo. Não direi que era bom. Seria injusto dizer que era insuportável. Era como a luz do sol - atravessando brechas e enchendo qualquer ambiente.
Meu pai inventou uma cantiga que recitava entre os dentes para fazer eu e minha irmã rirmos, maldosa mas ingenuamente.

"Perfume do Norte
Tem cheiro forte.
O perfume é 'bão'
Mas o cheiro não."

Numa noite, o perfume do norte encheu nossa casa. Minha avó partia para a capital para visitar as filhas. Lá adoeceu e nunca mais voltou. Fomos, minha mãe e eu, à sua casa na rua 3 para 'arrumar as coisas'. Achamos um porta moeda com cédulas antiqüíssimas. Fizemos os cálculos com a ajuda do meu pai e chegamos a conclusão de que era um salário mínimo inteiro. Aquelas notas, cheirando a mofo e emboladas umas nas outras, ficaram na minha memória por muito tempo. Ainda hoje, posso sentir o ralo pó cinza que elas deixaram na ponta dos dedos.

Morreu num dia cinza e medíocre de um setembro. Ficou, entre nós, uma saudade suportável. Ficou o incontestável fato de que ela faz falta em alguns momentos - mesmo que, na maioria deles, nós não nos damos conta disso. Ficou a vizinha do cão. Ficou a estante preta. Ficaram os versinhos que meu pai furtivamente a dedicara. Ficaram as notas empoladas. Ficou o Gugu dependurado, insensível, sorrindo.

Minha avó se foi e nós ficamos com sua solidão nos assombrando nos dias frios. Ela se foi e o Perfume do Norte continua no catálago da Avon, chama-se Crystal. Ela se foi e o Gugu ficou atazanando e deprimindo os domingos, agora numa quadro de imagens móveis. Ela se foi e eu ainda sinto sua falta, mesmo sem sentir.

sexta-feira, maio 11, 2007

A onda


A onda
Vai...
Vai...
Vai...
A onda se acaba nos braços da praia;
Não tem – nunca teve – pudor.
Agasalha seu último suspiro de amor
No colo fino daquela areia baia.

A onda
Vem...
Vem...
Vem...
A onda traz histórias de piratas e sonhos de uma sereia,
A onda vem despetalando flores e embalando as ilusões
De sua paixão terrestre feita de sal e areia,
A onda vem despertando vidas; vem ninando corações.

terça-feira, maio 01, 2007

Telemarketing Celestial

Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial


Gustavo achou um papelzinho amassado na beira do mar. Tinha vários números e três palavrinhas: Telefone do Céu. Não deu outra, correu pra casa e ligou:
- Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial, Anjo estagiário Galvão, bom dia.
- Oi. Bom dia.
- Bom dia, com quem falo?
- É... Sou... Gustavo.
- Sr. Gustavo, em que podemos lhes ser útil?
- Ah, é... bem, eu... Eu queria encontrar o amor da minha vida, tá difícil, sabe? Muita gente aqui na terra e...
- OK, Sr. Gustavo. Vou ver o que posso fazer. Por favor, aguarde um momento na linha.
Gustavo esperou por dois minutos, ouvindo She’s carioca, música da chamada em espera do telefone do céu.
- Sr. Gustavo?
- Oi.
- Obrigado por ter aguardado. Eu gostaria que o senhor descrevesse as atribuições necessárias para que nós possamos estar encontrando alguém para ser o amor da sua vida. Ok?
- Nossa! Mas eu pensava que fosse o destino... Tipo assim... Que eu já estivesse predestinado a alguém, e que fosse apenas necessário encontrar. Tipo alma gêmea, sabe?
- Entendo, Sr. Gustavo. Sr. Gustavo, por favor, confirme o ano de seu nascimento.
- 1984.
- Ok; por favor, aguarde um instante que eu vou confirmar essa informação.
Pausa rápida. Trinta segundos. Música: ‘O que foi feito deveras’, Elis Regina. Gustavo se impressionava com o bom gosto musical.
- Sr. Gustavo?
- Sim?
- Infelizmente a partir do ano de 1980 a ‘alma gêmea’ deixou de ser um item de série e passou a ser um item opcional, senhor. E, infelizmente, não pudemos estar detectando essa opção no senhor – disse o anjo com voz complacente.
- Hum...
- E em compensação – acrescentou o atendente angélico –, passamos a oferecer, desta data em diante, maiores oportunidades de crescimento social, em vez de crescimento romântico. Espero que o senhor esteja nos compreendendo, pois a decisão foi tomada mediante várias pesquisas feitas em várias partes do sistema solar, senhor.
- Tá; tudo bem. Mas e encontrar então alguém pra que eu possa amar e cuidar...
- Isso sim é possível, senhor. Eu apenas preciso estar confirmando algumas exigências do senhor.
- Então vamos, lá. Tem que ser loira, alta, da classe B ou A...
- Sr Gustavo...
- ... Bom que já esteja formada e empregada mas que seja nova e disposta...
- Sr Gustavo...
- Diga.
- Infelizmente, não poderei estar atendendo a solicitação do senhor. Nosso cadastro é feito com base emocional, espiritual e intelectual dos humanos; excluindo as transformações da matéria.
- Isso quer dizer o que?
- Isso quer dizer que o senhor precisa me falar como ela ou ele deve ser como pessoa, as qualidades, influências e assim por diante, senhor.
- Ela ou ele? – estranhou.
- Sim. O senhor está em qual país?
- Brasil.
- Só um momento, senhor. Hum... Desculpe-me o erro, senhor. Para a sua área está disponível apenas elA mesmo.
- Eu, hein. Enfim, que seja então carinhosa, amável, fiel e inteligente.
- Pode estar repetindo o último, por favor, senhor?
- Inteligente.
- Obrigado, senhor. Poderia estar confirmando a região do seu país para que eu possa estar completando a busca, senhor?
- Vale do Paraíba. Estado de São Paulo.
- Obrigado, senhor. Aguarde um momento na linha que estamos concluindo a pesquisa.
Nessa outra pausa, de três minutos, Gustavo ficou ouvindo Gilberto Gil, ‘Não chores mais’. “MPB tá super em alta lá em cima”, pensou.
- Senhor Gustavo?
- Oi.
- Infelizmente, nosso serviço ainda está em expansão e não se encontra disponível para a região solicitada. Pedimos que o senhor retorne a ligação em no máximo 60 dias para fazermos a pesquisa novamente.
- Ah, que droga!
- Como, senhor?
- Nada.
- Posso ajudá-lo em algo mais?
Gustavo estava transtornado. Mas arriscou:
- Pode me arrumar um emprego?
- O senhor está no setor emocional, eu vou estar transferindo a sua ligação para o setor profissional. Peço que o senhor aguarde na linha. Algo mais?
- Só. Obrigado.
- O Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial agradece, tenha um bom dia.
Pausa mais longa. Seis minutos. Tocava ‘Is this love?’, Bob Marley.
- Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial, setor Profissional, anjo Rangel, bom dia. Com quem eu falo?
- Bom dia. É Gustavo.
- Senhor Gustavo, em que podemos ajudá-lo?
- Rangel, eu queria um emprego.
- Ok, senhor Gustavo; devo lhe informar que pra sua segurança essa ligação poderá estar sendo gravada. Tudo bem?
- Tudo. Normal, uai.
- Poderia me confirmar o motivo da sua solicitação, senhor Gustavo?
- É que lá no que eu tô, eu fico o dia inteiro tirando xérox, sabe? Queria uma coisa que exigisse mais de mim, onde eu pudesse usar mais o meu intelecto.
- Ok, senhor Gustavo. Poderia estar me confirmando o seu código de usuário, ou os três primeiros dígitos do seu CPF pra que eu possa estar localizando seu cadastro?
- CPF, três, quatro, zero.
- Três, quatro, zero? Um momento, por favor.
Pausa de quatro minutos. Sunday Bloody Sunday (U2) no telefone. Gustavo gostou.
- Só mais um momento – advertiu o anjo.
- Tudo bem.
- Senhor Gustavo, obrigado por aguardar. Poderia estar me confirmando a data do seu nascimento, endereço e seu nome completo?
Gustavo o fez, pausadamente. E o anjo continuou:
- Obrigado pela confirmação; Senhor Gustavo, para a sua região temos apenas duas vagas de emprego disponíveis. A primeira é de um funcionário público que morrerá de tragédia na próxima quarta-feira que vem e a outra é de um apresentador de um programa da madrugada que será promovido por um furo de reportagem na cobertura da tragédia que matará o funcionário público.
- Sério? Que tragédia vai ser essa?
- Essa informação é sigilosa, senhor. Infelizmente, não posso fornecê-la.
- Ah, desculpa. Mas então, eu prefiro a vaga na TV.
- Na TV?
- Isso.
- Ok, vou estar finalizando o seu pedido. Por favor, aguarde.
Pausa longa. ‘My Way’, Frank Sinatra.
- Só mais um momento, por favor.
Pausa rápida. Pedacinho de ‘London, London’, Caetano. E anjo volta:
- Senhor Gustavo?
- Oi.
- Infelizmente nosso sistema está acusando que seu crédito está zerado aqui no céu.
Gustavo constrangeu-se.
- Como assim?
- Isso significa que o senhor está com seu limite de crédito já estourado e não poderemos completar sua solicitação.
- ... – Gustavo não sabia o que dizer.
- Se o senhor desejar eu posso estar passando para o setor de crédito do céu para que o senhor possa estar entrando com o pedido de mais crédito. Se a proposta for aceita, o senhor retorna a ligação e nós estaremos fazendo uma nova simulação.
- Passa pra lá, então – pediu, acanhado.
- Algo mais?
- Só isso.
- O Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial, setor profissional agradece a sua ligação. Tenha uma boa tarde.
- Obrigado.
Pausa muito longa. ‘California Dreaming’, The Killers.
- Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial, setor de crédito, anjo Bento.
- Bento?
- Sim. Por quê?
- Nada. Bento, eu preciso aumentar meu crédito. Pode me ajudar?
- Claro. Pode me confirmar seu código de cliente ou três primeiros...
E assim foi toda aquela repetição de dados e números até que o anjo começasse a entrevista para ‘dilatação de crédito’.
- Senhor Gustavo, o senhor poderia me confirmar suas três últimas boas ações. Lembrando que elas estão sujeitas a confirmação de veracidade.
- Boas ações? Bem, eu servi como voluntário numa entidade filantrópica que ajuda crianças carentes portadoras de Síndrome de Down...
- Sim, a segunda.
- Eu... – Gustavo tinha dificuldades em se lembrar –, eu também doei um livro para a biblioteca pública....
- Muito bem, a terceira, ditava o anjo.
- E eu... Eu... Fui... Estava... Comprei... Dou pão e água para os cachorros abandonados da rua da minha casa.
- Pão e água?
- Sim, confirmou Gustavo.
- Para os cachorros? – inquiriu o anjo.
- Exato.
- Obrigado pelas informações. Estaremos completando sua solicitação, por favor, aguarde na linha.

Treze minutos! Gustavo impaciente, já tinha ligado a televisão, cansado de ouvir quatro músicas seguidas da Norah Jones.

- Senhor Gustavo?
- Oi – disse num salto.
- Estivemos efetuando a confirmação dos dados apresentados pelo senhor e verificamos que o senhor serviu como voluntário por imposição legal, como pena por uma infração no trânsito.
- Mas eu era inocente! E aquele...
- Também vimos que o senhor doou o livro por que sumiu com um outro volume que tinha retirado da biblioteca.
- Foi a empregada. Não sei onde ela pôs.
- Quanto aos cachorros, a Associação Celestial o congratula pela boa ação, mas infelizmente ela não é suficiente para a dilatação do seu crédito, senhor.
- Tudo bem – disse Gustavo, arrasado.
- Posso ajudá-lo em algo mais?
- Só isso.
- O Serviço de Atendimento ao Usuário Celestial, setor de crédito, agradece à sua ligação e pedimos que, antes de desligar, o senhor esteja votando no nosso atendimento com uma nota de zero a dez, onde zero significa completamente insatisfei...
Gustavo desligou, com as orelhas quentes.
Amassou o papelzinho novamente e jogou pela janela. Ia sim melhorar suas boas ações; mas, não entraria com mais pedidos no Serviço de Telemarketing do Céu. Arrazoara que os Céus seriam muito mais sábios para lhe presentear com aquilo que ele realmente precisasse, no tempo em que ele verdadeiramente merecesse.

Enquanto isso, no escritório SPX de Publicidade:
- O currículo é bom. Gustavo Alexandre. Mas só dá ocupado.
- Tenta de novo.
- Já tentei várias vezes.
- Tem outro currículo em vista.
- Tenho...

E enquanto isso, na casa da Cecília, vizinha do Gustavo:
- Ele tá aí sim! A janela tá aberta.
- Mas não atende ao telefone! Deve ter identificador de chamadas e não quer falar comigo.
- Que isso, Cecília! Você é linda. Ele gosta de você desde criança. Tenta outra vez.
- Todo esse tempo ocupado?! Impossível. Desisto.