sábado, maio 26, 2007

Dia de Mudança

Dedicado a quem, assim como eu, identifica-se com os legionários versos:
“Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”.


Dia de Mudança

Ainda não eram oito da manhã. Muito frio e o Sol se escondia nas nuvens quando apontou, no começo da Rua dos Jacarandás, estreita e sem qualquer tipo de pavimentação, um caminhão pequeno – e até melancólico –, repintado de azul e branco. Digo ‘repintado’ pois é certo que não possuía sua pintura original; era tão velho que não se discernia o modelo e nem mesmo a montadora. Estava muito bem conservado, feito um automóvel de novela das seis, mas a vagareza e os ruídos diziam qualquer coisa negativa sobre o motor.

O carro passou por onde eu estava e chegou a uma casinha pouco mais a frente. A menor casa da rua, cheia de árvores no vasto terreno frontal. O caminhão parou e abriu a sua cercazinha traseira (admito que caminhões – tal quais os olhos – não têm cercas; porém, declaro-me ignaro da nomenclatura de acessórios e itens que um caminhão possa ter; então, fica ‘cerca’ mesmo). Do alpendre, gritou uma menina gorda: “O Caminhão chegou!”. Sim. Óbvio.

Desceram do automóvel dois homens. O primeiro mais velho e magro, vestido sem qualquer fagulha de zelo. O segundo bem mais jovem, pouco mais asseado que o primeiro, mas com a beleza jovial – uma beleza simples, bem simples; até ‘simplória’, eu diria.

Ambos iniciaram o carregamento. Pouco a pouco os pertences da menina gorda mais a outra pessoa para quem havia gritado eram expostos ao léu para serem levados até... Uma nova casa, naturalmente.

Móveis simples. Não que eu tenha reparado. Mas era inevitável. Pedaços aleatórios de um roupeiro. Um sofá bege (a cor que tenho ódio fulminante, apesar de me identificar com Flicts, de Ziraldo) que é sempre aderido por parecer não sujar muito – ou como se diz em minha saudosa terra natal, ‘por não ser ‘sujadô’’. Outras peças de madeiras e os nunca faltosos: fogão, geladeira e botijão.

O fogão (palavra engraçada: fogo, foguinho e...?) parecia ter sido comprado na Era Vargas. Bege (!) dos lados e preto na frente; cores impensáveis para nossa era de cozinha ‘toda-branca’ ou as ultra-modernas, platinium. Pendurado no fogão, a mangueira mezzo incolor mezzo amarela, com um ferro na ponta. Não faltou o botijão. Daqueles azuis. Um azul brilhante. Botijão bonito! Ganhou do rapaz carregador.

E se o fogão era de Getúlio, a geladeira era de Costa e Silva pra lá. Duas portas. Pezinhos arredondados, iguais aos que é vendido pela revista Hermes. O rodapé já não era mais, ficara no lugar aquele buraco todo ‘teia-aranhado’ (gosto de inventar palavras, é um esporte interessante; melhor que Sudoku).

Quanta exposição! Mudanças é uma devassa da vizinhança nos nossos particulares. Uma moradora da rua atravessou o caminhão vasculhando com os olhos tudo o quanto lhe foi possível, antes de entrar na sua casa. Ao passar por mim, sapequei um olhar de repreensão pela sua curiosidade incontida. “Que bisbilhotice medíocre, hein?!”, eu lhe disse com um ligeiro cerrar dos olhos. “E você?!”, ela me respondeu com um quase imperceptível arquear das pestanas.

- Bom dia, Fábio.
- Bom dia, Graça.

Hora de fechar a... cercazinha do caminhão. Momento delicado. Crucial até. Sempre há miudezas a colocarem no transportador. E houve. Uma bola suja. Alguns banquinhos de petróleo. Um tambor azul. Quatro almofadas. E galinhas. Aliás, perdoem-me! Não. Não havia galinhas! Sim, elas estavam lá mas estão aqui sujando minha crônica, com esse ar de mentira e galhofa, naturais aos galináceos. Pensarão, com certeza, os leitores que exagero ou até mesmo troço da vizinha. É preciso mentir para soar verdadeiro. Portanto, esqueçam as galinhas – eram três. Retiremo-las daqui. Não havia galinhas.

Como dizia, encerrou-se o carregamento. A senhora – mãe da gorda – cerrou o portão tentando esconder no rosto a gravidade do acontecimento. Mudar de casa é sempre uma ocasião de solenidades. Boas ou más. Boas e más.

O moço e o velho, para arrematar o carreto, passaram uma fina corda por entre tudo, apesar de que ficamos todos com uma impressão de que nada estava seguro ali em cima. Por via das dúvidas, o rapaz juntou-se às galinhas, digo, aos objetos na caçamba, para servir de culpado.

Da janela de sua casa, Graça olhava o caminhãozinho sumindo no começo da descida lá na frente. Nossos olhos se entreolharam e tivemos subitamente uma vontade lúgubre de correr atrás daquele veículo para sabatinar nossos ex-vizinhos. “Para onde vão? Por que foram? O que será da casa vazia?”

Assustei quando, sem que eu esperasse, Graça gritou-me lá de cima com um sorrisinho brejeiro:

- Eles vão precisar voltar.
- Sério? Por quê?
- Uma galinha caiu.

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