sábado, maio 12, 2007

Dona Maria Ferreira




A polêmica começou hoje a tarde quando minha mãe disse que o Joseph Ratzinger parecia minha avó materna. Isso é um desrespeito para com a falecida.

Pelo que vi entre os soldados suíços e os vidros blindados, Bento XVI é um senhor amabilíssimo. Sorridente, voz calma, inteligente. Queria conhecê-lo pessoalmente. Apesar de tudo, nem se compara com Dona Maria Ferreira.

Se estivesse viva, estaria comemorando 84 anos. Minha avó não era católica como todas as outras avós do mundo. Tenho poucas lembranças dela. Sei que era nordestina (como tudo o que eu amo) de Garanhuns, no Pernambuco. Na velhice, morava na Rua 3, casa 314, ou algo bem próximo disso. Morava sozinha e solitária. Quando chegávamos lá, dona Maria primeiro espiava por um pequeno buraco no vidro da porta da frente. "Somos nós!". O portão, apesar da monotonia irritante da pequena Colina, estava sempre fechado à cadeado.

Vinha ela, andando sem pressa, às vezes esboçando um sorriso discreto brincando no seu rosto branco e iluminando seus olhos amendoados. Abria com certa dificuldade o portão e recebíamos. À minha mãe com beijos e comprimentos discretos. Na minha vez, um abraço apertado e um beijo - era quase uma violação -, coisas da misteriosa relação adultas-crianças.

A casa era pequena e escura, mas bem arrumada. Uma televisão numa estante preta - estranhamente preta, já que hoje não se acham mais móveis totalmente pretos. Além do seu quarto, Dona Maria também tinha um quarto de costura. Era costureira de ofício, obviamente.

Se eu fechar os olhos, ainda hoje, posso sentir o cheiro daquele cômodo. É um misto de máquina de costura, tecido novo e o perfume da minha avó. Cheiro acolhedor. Cheiro afável. Cheiro de vontade de puxar um lençol de algodão e cochilar de felicidade. Cheiro da minha avó.

Nesse quarto ainda, havia numa das paredes um retrato do Gugu - pôster, como chamamos hoje. Gugu irritava. Não sei explicar porque o Gugu ficava lá dependurado, o tempo todo sorrindo, numa felicidade constante e invariável. Talvez pela convivência diária com o bom humor de minha avó.

Bom humor e mau humor também, já que ninguém é perfeito. Maria reclamava sempre da vizinha. A casa ao lado tinha muros altos e um portão todo fechado. Não lembro de tê-la visto (a vizinha), mas minha imaginação infantil pintava-a como algo bem próximo do Diabo, tamanha eram as reclamações que ouvia. Mas o mau humor e a frigidez com que nos tratava em algumas ocasiões eram frutos da vida difícil, dos poucos homens que teve e da solidão no fim da vida... Solidão. Ninguém merecia solidão. Menos ainda minha avó.

Ela vinha a nossa casa, as vezes, no caminho para o centro da cidade. Do vidro embaçado da sala de casa, via seu vulto leve parar em frente o portão e abri-lo. Com seus costumeiros vestidos de corte simples e bem estampados e sua marca registrada: o perfume. Fortíssimo. Não direi que era bom. Seria injusto dizer que era insuportável. Era como a luz do sol - atravessando brechas e enchendo qualquer ambiente.
Meu pai inventou uma cantiga que recitava entre os dentes para fazer eu e minha irmã rirmos, maldosa mas ingenuamente.

"Perfume do Norte
Tem cheiro forte.
O perfume é 'bão'
Mas o cheiro não."

Numa noite, o perfume do norte encheu nossa casa. Minha avó partia para a capital para visitar as filhas. Lá adoeceu e nunca mais voltou. Fomos, minha mãe e eu, à sua casa na rua 3 para 'arrumar as coisas'. Achamos um porta moeda com cédulas antiqüíssimas. Fizemos os cálculos com a ajuda do meu pai e chegamos a conclusão de que era um salário mínimo inteiro. Aquelas notas, cheirando a mofo e emboladas umas nas outras, ficaram na minha memória por muito tempo. Ainda hoje, posso sentir o ralo pó cinza que elas deixaram na ponta dos dedos.

Morreu num dia cinza e medíocre de um setembro. Ficou, entre nós, uma saudade suportável. Ficou o incontestável fato de que ela faz falta em alguns momentos - mesmo que, na maioria deles, nós não nos damos conta disso. Ficou a vizinha do cão. Ficou a estante preta. Ficaram os versinhos que meu pai furtivamente a dedicara. Ficaram as notas empoladas. Ficou o Gugu dependurado, insensível, sorrindo.

Minha avó se foi e nós ficamos com sua solidão nos assombrando nos dias frios. Ela se foi e o Perfume do Norte continua no catálago da Avon, chama-se Crystal. Ela se foi e o Gugu ficou atazanando e deprimindo os domingos, agora numa quadro de imagens móveis. Ela se foi e eu ainda sinto sua falta, mesmo sem sentir.

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