sábado, abril 21, 2007

Perdas e Ganhos

Como explicado no post "MUDANÇA DE NOME", os posts a partir de agora serão mais ou menos assim.


Perdas e Ganhos


Nas quintas-feiras, depois da reunião eu entrava na Ipanema último modelo (em ordem crescente) do seu Santo e seguia para a fazenda Jaraguá. Eram uns vinte ou trinta quilômetros.

Mata-burros. ‘Poeirão’. Laranjeiras. Seringueiras. Bois. Um açude. Uma construção velha. Um curral abandonado.

Debaixo daquela lua cheia, de orgulho e de luz, os pastos ganhavam um manto prateado, uma roupa de cama natural, um lençol para o frio noturno que se deitava pela relva da fazenda Jaraguá.

No fim de semana que entrava, então, perdia um pouco a minha noção natural da contagem da passagem do tempo. As horas atropelavam os dias e os minutos pareciam brincar nos caminhos da noite. Eu brincava com eles. Brincava sob as copas de árvores altas e imponentes. Chafurdava-me naquela areia, com medo das galinhas e espreitando o horizonte.

A cozinha caipira – meu lugar preferido da sede – era bem grande, com um fogão a lenha lá no canto e com uma grande mesa de madeira perto da porta, com dois bancos compridos. Sentávamos nós três – Seu Santo (que, tendo nascido eu órfão de avô, pude escolhê-lo para o cargo), Nice (que, sendo eu tímido e fraco de demonstrar sentimentos, nunca pude retribuir-lhe toda minha gratidão por existir) e eu. Ali, eu ria das piadas de meu ‘avô’, nordestino como eu viria descobrir-me dez anos depois.

Domingo era o dia em que eu, já cansado da brincadeira e andanças pela fazenda, ficava sentado na rede da varanda da frente observando os carros passar na estradinha lá no outro morro, vendo o gado branco caminhando pra lá e pra cá, com a cabeça baixa e o corpo pesado. Pequenos e indefesos de longe. Se quer os tocava, quando perto. Depois do almoço dominical, sempre o melhor da semana, como manda a nossa cultura, achava numa gaveta de um guarda roupa grande, atrás da porta do quarto do casal, uma caixa achatada e retangular.

Um jogo. Um?! Vários! Vários também não. Eram quatro. Quatro em um. No abrir daquela caixa única, entravam em cena dois tabuleiros de dupla face e dezenas de pecinhas coloridas para os respectivos passatempos. E, claro, os dados. Dois dados brancos, com as arestas levemente arredondadas.

Jogo de damas. Ludo. E mais outros dois que não consigo me lembrar por serem sempre irrelevantes à minha atenção infante. Meu preferido, aos pares, era o jogo de damas. Entretanto, naqueles fins-de-semana de solidão pungente (e deliciosa) eu ficava com o prazer de jogar Ludo. Sozinho? Não. Entre quatro.

Como Fernando Pessoa fazia para escrever, eu também me dividia em outros jogadores. Existia, óbvio, o oficial. Era eu. O azul. O amarelo, o vermelho e o verde também era eu. Mas eu mesmo era o azul. Eu (azul) sempre ganhava dos outros três. Devo confessar que, sendo minhas a lei e a ordem daquele tabuleiro, eu talvez insistisse em abusar um pouco dos poderes legislativos a mim conferidos (por mim mesmo).

Ninguém gosta de perder. Eu sempre ganhava com o azul. E eu sempre perdia com as outras três cores. A cada rodada completa por aquele tabuleiro de Ludo, passando por todas as cores até chegar ao centro, entre os dados tiritando no chão encerado de vermelho, eu perdia três vezes, só para ganhar uma.

As visitas à fazenda Jaraguá foram se rareando até que ‘meus avós’ sumiram de lá. Vieram pra cidade (ou Colina). Esses dias, uma lágrima me escapou do canto dos olhos – sem meu consentimento. Acontece que encontrei no Google Earth, depois de detalhada busca, a fazenda Jaraguá, minha Terra do Nunca pueril e privada, meu Reino Encantado de Sonhos, Fantasias, Rainhas e Peões de um jogo de ludo.

Saudade – pedra de tropeço constante na minha estrada da vida. Acho que nunca mais poderei voltar lá. ‘Sinuar’ aquelas estradas barrentas. Analisar a passagem do tempo pelas folhas do pé de mexerica ‘pocan’ atrás da casa. Deitar-me, com a barriga no chão, os pés elevados sobre o corpo, uma mão segurando o queixo e a outra controlando as ações das peças do meu jogo de Ludo. Se pudesse, no entanto, perderia pra mim mesmo (azul) e deixaria os outros três empatados na primeira posição.

De tudo o que já ganhei da vida e das pessoas, pouca coisa restou, ou ainda restará daqui dez anos. As roupas gastaram e foram parar debaixo de um rodo, arrastadas e esfrangalhadas pela casa toda. Os brinquedos eu quebrei, regra da minha falta de esmero por coisas materiais – herança calamitosa que eu trouxe da infância para a vida adulta.

Todavia, eu posso lembrar-me com detalhes das coisas que perdi. Das coisas que me roubaram, digo-lhes o cheiro, os detalhes – em alguns casos até as instruções da etiqueta. Das pessoas que o tempo levou pra longe, poderia detalhar o sorriso, o jeito de olhar, de andar e parte dos seus gostos pessoais. Todas as coisas e debates que perdi, todos os objeto e assuntos que me roubaram e todas as pessoas que simplesmente sumiram enquanto eu fui à cozinha passar o café foram substituídas (mesmo sendo todas elas insubstituíveis) por lições que posso (se apenas quisesse) aplicar nas próximas posses, nos próximos debates e nas pessoas que ainda não encontrei.

Ninguém gosta de perder. Perder é doloroso, porém inevitável. Pior que perder um amigo ou um amor é não conseguir aprender nada com isso. Aquilo que perdi por ter errado me ensinou a não cometer o mesmo engano novamente. Aquilo que perdi por falta de atenção me ensinou a ser mais dedicado aos afazeres e pessoas em minha volta.

Não tenho pudores para dizer: acho que, no saldo interino da vida, perdi muito mais do que ganhei. Cometi vários erros. Às vezes, o mesmo erro várias vezes. Quem sempre ganha o que quer, não tem nada a buscar. Eu tenho buscado reconstruir tudo aquilo que por um motivo qualquer deixei de zelar: relações, opiniões, pontos de vista... E mesmo nessa busca já perdi, mas recomecei, sem parar pra lamentar... Quando já se perdeu tudo, não há mais tempo a perder.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Lendo este voltei no tempo.
Voltei no tempo que eu já não me lembrava mais de quanto eu havia sido feliz.
Feliz com coisas tão simples, quanto dar o que comer as galinhas, deitar debaixo de uma sombra sentindo o cheiro de mato, de terra, de chuva.
Me lembrei de quando acordava cedo após ter sonhando a noite que eu cavalgava com o meu alazão, ia correndo para o curral arreiar o "neguinho", cavalo já velho que para dizer a verdade de alazão não tinha nada, cansado que tenho em mim que se arrepiava quando me via só de imaginar que teria que me aguentar o dia inteiro se pendurando nele, fazendo o mesmo cavalgar pelos pastos como se eu não fizesse idéia da idade avançada que o mesmo tinha, rs. É eu era feliz e não sabia.

segunda-feira, maio 14, 2007 1:39:00 PM  

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