domingo, abril 15, 2007

Memórias da Fuga




Vou fazer uma tatuagem. Na testa. ‘Vergonha’. Em inglês, claro: ‘Shame’, (acho que é isso) em letras tribais, grandes. Porém, confesso que não sei exatamente do que, vergonha de quê? De ter ido? Acho que sim... Ou de ter voltado? É, acho que também.

Fugi de casa. A sua casa tem a sua cara, aposto. A casa de cada um tem a cara de cada um. A minha casa tem a minha cara. Fugi de casa. Fugi de mim. Estou assim desde que nasci: fugindo de mim mesmo e tentando me buscar, lutando pra me alcançar.

Por se parecer tanto comigo, por ser uma extensão do meu corpo e mente, essa casa ficou-me insuportável e parti numa manhã de terça-feira, com três bolsas de mão. Que pergunta! É claro que eu não estava pensando no que eu estava fazendo. Se estivesse, não teria ido. Ou não teria voltado.

Na semana em fuga, não me envergonho de dizer, fiquei setenta e duas horas sem comer – roubando bolacha do Compre Bem pra não desmaiar. Na semana, quase levei um tiro de um dos quatro assaltantes que invadiram o Café que eu estava no Boqueirão. Não me envergonho de dizer. Envergonhar-me-ia de ser orgulhoso e omitir minhas falhas.

Vi a morte, de pertinho. Dormi embalado pelos ruídos que meu estômago soltava pelo quarto daquela pensão. Sentei-me por várias vezes no calçadão da orla pra admirar os seres. Seres que não fogem de casa. Humanos de intensa sabedoria e equilíbrio emocional. No meu espelhinho de borda laranja eu me via: os olhos decorados com uma sombra negra; os ossos e músculos dos ombros saltando da pele.... ‘Desequilibrado! Burro! Fujão, ’ pensava. Nada admirável.

Em oito dias de pouco comunicar, pegava o celular e fingia conversar com alguém, para não me desacostumar com minha própria voz. Falava em inglês. Meu inglês imaginário. As pessoas olhavam atentas. “Coitado dele”, esboçavam com os olhos.

‘Por que meu namoro com a baiana não viu a luz do segundo dia?’, comecei a delirar. ‘Por que a mineira ‘louca por ti, América’ nem reparou em mim? E por que a paulista... devo escrever seu sagrado nome... E por que Aline não se casou comigo? Estaria nessa chuva sob edredons macios e confortáveis com a...’ Basta! Chega de pensamentos negativos! Eram mulheres! Mulheres são assim! Complicadas e inacessíveis! Homens também. Complexos e indiferentes! Os humanos são assim... Eu sou assim.

Senti-me a milésima reencarnação de ’L-YÓHV (Jó) diante das desventuras e infortúnios que me acometeram nos oito dias. Enquanto isso, graças à ‘discrição’ e ‘confiabilidade’ dos visitantes deste espaço virtual, ia tornando-me uma celebridade, um RBD, uma ovelha branca para os conhecidos na minha terra natal. ‘Vou voltar’, era terça-feira.

Depois de perder o ônibus e ser alvo dos flertes de um transexual no ônibus seguinte, cheguei ao Guarujá. Ao entrar no Ferry Boat para Santos, agarrei-me ao colete salva-vidas, pois imaginei que apenas faltava a morte por afogamento para concluir meu ‘juízo final adiantado’. Cinco minutos. Longos e balançantes. Cheguei à outra margem e fui para a rodoviária. Perdi outro ônibus. Por fim, passei muito mal entre Riviera e Maresias. Abri a janela do ônibus (não tinha ar-condicionado) e senti o vento entrar pelos meus poros enquanto admirava a praia de areia fina e branca, profundo contraste com o mar intensamente azul. Muito mal. Curvas. Péssimo. Freadas bruscas. Pior ainda.

Pus-me a cantar todas as cantigas judaicas que ainda lembro substituindo os versos que esqueci pela sentença: “’E·lí, ’E·lí, la·máh ‛azav·tá·ni?” (Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?) É difícil cantarolar uma pergunta. Ainda mais em hebraico. Sempre acaba soando como afirmativa. Sempre.

Não era o ônibus que me fazia sentir mal. É o mundo. Não é o mundo. Olha a Ilha Grande! É linda! São as pessoas. Sou eu. Por isso fugi das pessoas, tentando fugir de mim mesmo.

O resultado foi uma grande decepção. Pois, chegando lá, eu notei que continuava no mundo, rodeado de pessoas e repleto de mim mesmo. Notei também outra coisa:

No terceiro dia de fome, com a cabeça doendo, os joelhos vacilantes e a vista nebulosa, entrei no Compre Bem abri um pacote de ‘Chocolícia’ e despejei algumas no bolso da calça. Acho que caíram quatro. Bem vestido. Calçado. Os seguranças sorriram para mim, enquanto eu saía. Você que me lê tem toda a licença para me acusar, me julgar e me condenar. Nunca passou fome. E espero que nunca passe.

Pouco me importei com a Constituição, desrespeitada até pelos constituintes. As quatro bolachas não me fizeram bem, muito menos aplacaram minha fome. Ao contrário de mim, a maioria de minhas enzimas digestivas foram fiéis ao oitavo mandamento e praguejaram horrores aos quatro frutos do pecado que repousaram no meu estômago cavo.

No mesmo dia, como que por um presente da Providência, pude jantar. Ao cabo dos nove salgados, senti-me feliz. Feliz mesmo. Todos os meus anseios materialistas e todas as minhas necessidades emocionais mostram-se tão frívolas diante dessa realidade diária, básica e irreversível: querer e saciar-se.

Por isso voltei para casa. Para me saciar de meus pais, amigos reais e paz. Meu livro... Meu notebook... Minha casa... Minha carteira de motorista... Meu cruzeiro pelo nordeste... Deixei todos esses desejos junto com o Fábio que fugiu e acabou ficando por lá. O que voltou, voltou apenas com desejos básicos: morar, comer, ser feliz e ter paz. Não me importa o “como” morar, nem o “o que” comer. Importa ser feliz. Importa muito ter paz.

Esse sentimento (comodismo) irrita alguns. Irrita-me também, confesso. A fuga foi o ápice das minhas turbulentas transformações iniciadas no meu vigésimo PÉ-SAHH (Páscoa Judaica). Frustrado por ter ido. Decepcionado por ter voltado. Ao menos, de bom, ficou o fato de que estou muito mais calmo e ciente do que quero; que basicamente são três coisas: Sha·lóhm (Paz), ’a·haváh (Amor) e ’é·sher (Felicidade).

Até hoje, já vi muitos trilharem diversos e sofríveis caminhos para chegar aos sentimentos que busco. No entanto, como já foi dito antes de mim, não há caminho para sha·lóhm, ou para o ’a·haváh e ’é·sher.

Na estrada da vida, não sei para onde vou, mas sei muito bem onde estou. A felicidade, o amor e a paz é o caminho... É o meu caminho.



Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

2 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Oi, binho.. .tudo bem?
To com vc pra que precisar, blz?
teh mais

domingo, abril 15, 2007 4:58:00 PM  
Anonymous Anônimo disse...

é isso ai vc q escolhe onde quer chegar se os caminhos sao esses. solid!

quarta-feira, abril 18, 2007 10:09:00 PM  

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial