segunda-feira, abril 23, 2007

O Muro

O Muro


No passeio, ao lado daquele muro extenso e pintado de branco, caminhava um garotinho com a mão esquerda suspensa, agarrada à de seu pai e a outra mãozinha passeando como um beija-flor, ora no seu pequeno e ingênuo rostinho, ora no ar e apontando as coisas que admirava.

Passando pelo muro, confiante e resoluto que seu pai o conduzia para um lugar seguro, estava disperso em admirar aquele muro grande e ‘incomum’.

- E... T... I... T... E... A... C... – soletrava calmamente o pequeno.

O pai olhava para cima, olhava para o chão, totalmente absorto para dentro de si. O que o garotinho via era a publicidade de uma madeireira que ocupava todo aquele terreno murado. ‘Madeireira Caetité’. Passando pelo lado oposto das letras que eram do seu tamanho, a criança soletrava como narrado acima. E continuou:

- A... R... I... E... R, de novo, pai! I, outro?! E...

Seu pai, sem qualquer reação, continuava caminhando com um olhar sério, de quem se preocupa com algo, de quem se afoga na sua preocupação interior.

A maioria dos nossos sentimentos negativos seria sanada se adquiríssemos de volta essa sensível percepção pueril. Não são muros pintados ou outdoors. São milagres ainda maiores que acontecem todo tempo a nossa volta ou dentro do nosso próprio corpo. No começo, quando crianças, notávamos tudo, e nos admirávamos com as coisas que o mundo e as pessoas são capazes de produzir. Mas depois a montanha alta e cheia de vida, o mar azul e infinito, as aves cantando, uma mulher grávida, um casal apaixonado, um sol indo ou vindo... Tudo é normal. Precisamos de cinema e TV pra criar coisas realmente ‘interessantes’, em geral, as mesmas coisas que vemos o dia inteiro, só que reduzido a 14, 20 ou até 72 polegadas, de qualquer forma menores que nós e palpáveis à nossa capacidade de admiração limitada – a pior das mazelas aparentemente naturais do amadurecimento.

O egoísmo é a condição predominante das pessoas. Uns mais. Outros menos. Mas todos egoístas. Esse sentimento faz com que, com o passar dos anos, paramos de olhar para todos os milagres inefáveis que acontecem ao nosso redor, para voltar toda a nossa atenção e força para nossa própria cabeça – com seus problemas, com suas soluções, com um outro universo, paralelo ao real.

A nossa passagem pela vida é como aquele muro. Quando se caminha ao lado dele, parece longo. Mas do outro lado da rua é bem menor. Do outro lado do mundo, então, ele nem existe.

Nessa caminhada, pronuncie sonoramente cada letra que lhe for apresentada, junte cada palavra, questione cada frase. Pegue tinta e decore-o com bons sentimentos para outros, perdoe quem lhe pedir perdão (e os imperdoáveis também (mas só de vez em quando)), ajude aquele que lhe pedir ajuda (e quem não pedir também), e, acima de tudo, ame quem te amar – mesmo discretamente –, e ame quem te odiar também – mesmo que seja intensamente.

Porque lá no final do muro, a constante e tardia descoberta de todos é a mesma: o amor é um milagre do mundo; mas amar é um milagre particular, todo seu.

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