sexta-feira, julho 27, 2007

Águas de Março - É pedra...

Todas as tardes de sábado, os meus dois amigos Brunos e eu saíamos para um city tour pela ‘megalópole’ que é minha terra natal. O roteiro era sempre óbvio: Recinto Nove de Julho, Ponte Alice Dias e uma passada na Sorveteria Dubon pra terminar.

Naquele sábado, excepcionalmente, uma quarta pessoa integrou nossa comitiva bandeirante. Renan era, na época, terrível. Terrível, não; desculpem, exagerei. Renan era um garoto travesso (ou ‘menino malino’, em baianês). A estação de trem estava abandonada e Renan sugeriu que quebrássemos as vidraças todas.

“Quebrar?! Quebrar vidraças?! Quebrar as vidraças pagas pelo erário, numa típica construção ítalo-portuguesa do fim do século XIX?! Quebrar as vidraças de um bem público e que em breve poderá se tornar patrimônio cultural pelo seu valor histórico da áurea era do café no norte paulista?!”, pensei. (É pensei tudo isso mesmo! Raciocínio rápido?! Você acha? Ah, obrigado; é bondade sua.)

Mas continuando, sempre fui o ‘Lineu Silva’ da turma. Apelei para o bom senso, a ordem, os bons costumes, a Torah, Deus, Jesus Cristo... “Isso lá é coisa que se faça?! Tenha dó! Posso escutar o lamento lúgubre e pungente que a o prédio deixa escapar pelos seus caibros e rebocos (Eu já era meio poeta, né?!) Tenha dó!” Não houve meios de convencê-los ou de desconvencê-los a pôr a estação abaixo (que exagero! Seriam uns vidrinhos, apenas).

Os Brunos estavam excitadíssimos com a idéia. A bem verdade, Renan era tudo o que o judaísmo não nos permitia ser. Além do que ele é confiável, seria discreto, nunca que contaria pra alguém. Nunca! Jamais! “Então, vamos.”

Fomos. Entramos na linha do trem e paramos em frente a estação. Como item tradicional das linhas férreas, os trilhos eram sobrepostos em madeiras e pedras. Muitas pedras! Renan começou. Pegou uma pedra e lascou-a na vidraça. Eu, resignado, ainda balbuciava algumas cantigas judaicas que lembrei para pedir perdão ao Supremo Deus. Um dos Brunos, movido pelo dever masculino de não se permitir ser ultrapassado em força, coragem ou tamanho da... bravura, abaixou-se, pegou a pedra e lanço-a numa trajetória elíptica acrescidos dos movimentos em torno do seu próprio corpo – mui semelhantes à rotação da Terra (Ah, quero aproveitar a ocasião para dizer muito obrigado à Dona Emni pelas aulas de Física! Devo tudo o que sei às suas explicações precisas e também a seus olhos de secar pimenta que nos fazia derreter sobre a cadeira da escola “Lamounier de Andrade”).

– Wow! Que isso?!, alguém gritou.

- Deus seja louvado!, emendei.

Corremos! Corremos muito. Pulamos os trilhos e ganhamos a agitação do centro da cidade para despistarmos do nosso delator. Estávamos perdidos! Alguém havia nos visto, anotado nossas placas e agora nos perseguia com ferozes cães antropofágicos! Seríamos expulsos do país (começou a ficar bom!) e ficaríamos longe das nossas mães e seus comprimidos para engordar!

Mas que nada! A misteriosa voz que nos repreendeu não prestou queixa à Suprema Corte Pan-americana dos Direitos das Estações Ferroviárias Abandonadas e Mal-assombradas, como imaginei que faria. Até fiz algumas contas: Renan pegaria mais tempo de prisão enquanto eu ficaria menos porque apenas fui cúmplice e não propriamente criminoso. Quando se tem onze anos qualquer repreensão é associada à polícia, pisa dos pais, cadeira elétrica... Mas evidentemente, não!

Ficamos (e estamos até hoje) impunes. Pelo que me lembro, esta foi a primeira noção mais clara que tive de que havia nascido no Brasil, e o que isso significava.

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