segunda-feira, janeiro 15, 2007

Fábio, Um homem casado (inédito)


Meus amados leitores, creio eu que a Senhora Vida ofereceu-me apenas uma chance de ser feliz se esposado. Casar-me já fez parte dos planos. Narro-os nesta noite. São engraçados. Cômicos. Trágicos. Fagulhas de uma chama apagada. Lascas de um coração partido, encontradas na melancolia metódica da chuva que caiu na tarde desse sábado. Pedacinhos de um sonho com os prazos de validade já vencidos que sempre escapam às faxinas que as circunstâncias me obrigam a fazer no peito e que sempre aumentam em volume, grandeza ou extensão nos dias de solidão larvada. Paro por aqui, antes que o prólogo se torne mais extenso que a própria crônica. Julguem por vós mesmos, meu somniu innatus. Concluo o prólogo então, com a certeza que a Vida é senhora generosa e pródiga, enquanto o Tempo é senhor grave e avaro.
Em todo casamento que eu ia, no momento da noiva entrar no recinto, eu costumava substituir seu rosto e jeitos pelos graciosos jeitos e celestial rosto da Aline. Meu sonho de vida, minha idéia fixa para o milênio era desposá-la. Moraríamos num sítio bem perto da cidade; teríamos um carro ou uma moto... Uma moto está bom; trabalharíamos bastante, ela como profissional da odontologia – posto que linda – e eu professor de inglês para alunos carentes – de dinheiro, cultura e arte.
Nas segundas-feiras, despertaríamos para a semana entrante, sôfregos e serenos. Tomaríamos um café da manhã com queijo, presunto e pão fresco preparado pela secretária do nosso lar, com um apelido qualquer. Quase sempre atrasados, sairíamos correndo na moto... Não! Moto não dá! Tem que ser carro. Chove-se muito no inverno, além dos perigos que vertem do guidão de uma motocicleta. Decido-me pelo carro. Onde eu estava? Ah, claro, atrasados. Quase sempre atrasados, sairíamos no nosso carro para Colina. Cinco ou dez minutos e já estaríamos lá. Eu deixaria a loira em sua clínica. Na saída do carro, Aline dar-me-ia um beijo simples, porém longo. Arrumaria suas tralhas, colocaria os dedos longos e finos na maçaneta do carro e antes de sair, mais um beijo.
- Eu te amo, diria e seguiria para o templo educacional que eu lecionaria a língua capitalista a pequenos comunistas.
Às onze horas e trinta minutos, livre dos diabretes, eu, the English Teacher, daria partida no carro para novamente encontrar-me com a mu
sa-mor das minhas poesias. Mais um beijo, esse de ‘olá’ e narrando fatos corriqueiros da má higiene bucal ou de natureza financeira – devida a alta inadimplência entre seus clientes e pacientes, Aline gesticularia e falaria aos meus atentos ouvidos.
Já eu exporia minuciosamente as lições passadas, as provas corrigidas, as surpreendentes questões propostas por meus aluninhos e assim: rindo, falando e entreolhando-se, em silêncio, passaríamos as duas horas reservadas ao almoço manso e a sesta – esta última abraçados, assistindo as notícias comerciais, publicitárias e cotidianas do mundo que existiria fora do nosso sítio.
Hora de voltar ao trabalho! Outra vez atrasados... Outra vez um beijo simples e demorado... Ajuntar tralhas... Mais um unir de lábios... Mais uma vez, pequeno diabos para lhes incutir a soberania norte-americana...
Naqueles momentos em que o dia, todo tímido, vai saindo por um dos cantos do céu, sabe-se lá que horas são essas?! Talvez seis, seis e trinta... Que seja! Nessa hora, eu rebuscaria a loura em seu consultório – ainda que pequeno, ainda que necessitando de alguma reforma e novos equipamentos, mas seu; arriscaria até iludir-me como sendo nosso.
- Vamos embora? Sugeriria eu.
- Sim, responderia Aline com um sorriso, o mesmo sorriso de sempre,
aquele de quando éramos pequenos, aquele que ora tirava meu sono, ora afagava-me no leito noturno. Sorriso capaz de envergonhar a cosmosfera em noite na roça, sorriso capaz de me fazer reapaixonar-me a cada ligeira contração dos músculos faciais.
Ao caminho da nossa casa no mato, ouviríamos uma música romântica e bem piegas, cantaríamos juntos, olhando-nos e rindo da inefável bem-aventurança de ter encontrado um ao outro.
Após o banho (afinal, se casado com ela eu finalmente emendaria e tomaria banho todos os dias) e após a janta, nada de jantarão, algo simples, preparado por e para nós mesmos, ali, sentados na cumprida mesa de madeira, com a luz falha da cozinha caipira, ouvindo os horripilantes coaxos e outros sons vindos de fora...
corujas, grilos, enfim, sons de todas essas crias da noite... comentaríamos um ou outro caso relevante da vida de nossos amigos ou agregados.
Quando se visse, eis que já são dez e tanto. Os seus olhos verdes – sempre tão vivos e ágeis – já apresentariam sinais de letargia. Num pijama bem recatado, rosa e branco, Aline seguiria para nosso quarto e, depois de asseados os lençóis e os edredons, depois de abalofados os travesseiros recheados de plumas... ela deitaria-se de sua costumeira maneira pueril e eu, igualmente modesto nos trajes noctívagos, estiraria meu corpo ao lado do dela e adormeceria à leve sinfonia advinda da sua respiração – não direi roncaria por ser injustiça e por ser educado.
E então, tudo, tudo e tudo o que já tivera vivido de ruim... tudo o que eu já tivera visto de mal... tudo o que já tivera falado em erro... todos os que já tivessem me contristado... todos os que já tivessem tido o prazer de me ver à mingua... tudo... todos... Ficariam lá, do lado de fora do sítio, do lado de fora do nosso mundo, além dos portões do nosso reino, onde eu (vaidoso ser), de poeta seria promovido a Rei; onde Aline (humilde alma), de deusa render-se-ia à discrição de ser apenas a minha etérea Rainha.


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