segunda-feira, junho 18, 2007

A Cartomante (by Menino da Lua)


Lembra do Gustavo? Ele voltou.

Gustavo, nosso herói, esperava o futuro. As coisas pareciam atrapalhadas com pingos do passado maculando bocados do futuro e tingindo diametralmente o presente.
Andava pelas vielas estreitas da cidade como que procurando respostas nas grandes pedras no chão ou nas eiras das casas ao alto. E se as achassem, quais eram as perguntas? Nada era claro. Imaginava-se estagnado sobre um punhado de areia movediça e, a cada tentativa de desvencilhar-se, via-se mais gravemente submerso.
Eram oito da noite. Com as mãos no bolso e olhar perdido, Gustavo passou por uma rua mal iluminada, o único poste com luz pública divulgava, à altura dos olhos, numa folha simples e que poderia facilmente ter passado despercebida:
Madame Isabel Castela
Cartas Ciganas
Sorte. Futuro. Respostas.
Asneiras! Crendices! Cultura inútil, pensou. Passou adiante. Na esquina um vento frio pedia passagem. Gustavo cerrou os olhos. E reacomodou-se nas blusas que o agasalhavam. No mesmo vento – um desses ventos com remetente, destinatário e anexos que voam por aí – veio uma lembrança infantil de Gustavo.
Aos doze anos, num parque de diversões na capital, por incitação de um primo que visitava, entraram os garotos na barraca de uma espanhola. O cheiro de incenso, como sempre, fez-lo se sentir leso. Ambos achavam graça da situação. Os primos dividiam a mesma cadeira em frente à mesa colorida da cartomante. Ombros caídos e olhos colados nas cartas que ela virava. Estavam de férias. Começo do ano. A tal cartomante do parque, na barraca de luz baixa, disse coisas sobre o futuro do primo. Errou tudo. Sobre o seu, apenas se lembrava do que a mulher tinha acertado. "Grande mudança este ano".
"Grande mudança..." O vento trazia aquele parque com as palavras da cartomante. Naquele ano, Gustavo deixou a vida serena do interior e mudara para a capital. ‘Coincidência’, apenas isso. Com doze anos, é normal grandes mudanças acontecerem. "Grande de uma charlatona", disse aos pais e tios naquele dia. "Charlatã", corrigia o pai. Porém, Gustavo também estava certo. E as cartas... coincidência ou não... ainda mais.


Caminhando entre essas e outras lembranças, mais adiante reparou num poste com publicidade igual a anterior. Só agora, porém, Gustavo reparou no endereço.
Madame Isabel Castela
Cartas Ciganas
Sorte. Futuro. Respostas.
Rua General Osório, 495
Não era, como não desejava querer, caminho de sua casa. No entanto, ainda era possível uma passada rápida pelo endereço, sem que isso lhe causasse atraso. Caminhava a esmo. Agora tinha uma direção.
Uma rua suavemente inclinada, estreita. Os passos de Gustavo nas pedras ecoavam nas janelas e portas rentes ao passeio. Ali era o 495. Desacelerou o ritmo. Passou curioso pela casinha de uma porta e uma janela. O azul da parede era gasto ou mal pintado. Junto ao marco da porta, os tijolos expostos, ferida no reboco antigo. Dois degraus saiam do meio fio e chegavam à porta de madeira, pintada de branco. Procurando sinais vitais, Gustavo notou numa luz fraca que vinha de dentro, bem ao fundo.
Num ruído que lhe assustou, a porta de abriu. Gustavo ainda tentou disfarçar a curiosidade. Uma senhora muito maquiada, de cabelos longos e armados agradeceu e saiu. Atrás dela, como a espreitar os caminhos da cliente, estava Madame Isabel Castela.
A cliente desceu a rua. Gustavo subia, procurando analisar aquela de quem vira nos postes.
- Não quer entrar?
O menino surpreendeu-se com a pergunta. Não queria. Mas por que passava por ali? Virou-se para ela e viu-a sobre a luz da rua. Meia idade. Óculos discretos. Gordinha. Cabelos pouco avermelhados e pele clara. Sorria discretamente. A imagem daquela cartomante de parques, praticamente assim fantasiada era diferente desta agora a sua frente. Sem jóias. Sem saias compridas e rodadas... pra que mais enrolar? Gustavo entrou.
Isabel conduziu o rapaz para o fundo da casa. Estava escuro lá dentro. Passando pela sala, sob a luz fulgurante da TV, havia uma senhora muito idosa numa cadeira. Aquilo lhe fez lembrar sua bisavó que, naquela noite no parque, advertira: "Não é direito moço cristão – como vocês – se arrastar pra essas catimbas". Os primos riam das palavras estranhas da velha. Mas o conselho não tinha graça. Era sério. Uma brisa intrometeu-se na casa antes que a porta se fechasse. Trouxe aquele conselho a Gustavo.
- É minha mãe de criação. Vamos?
Nem havia reparado que estava parado em frente à velha e sua TV. Continuaram até a cozinha, onde Isabel mostrou-lhe a cadeira e sentou-se logo à frente. O baralho ainda estava na mesa. Isabel tomou-o e começou a embaralhar com os olhos fixos na carta. Gustavo não sabia o que dizer. Queria ir embora, mas usara todas as suas forças para entrar. Estava moralmente fraco para recuar.
- Futuro... sorte... respostas?
- É – respondeu o garoto – preciso disso. Virar adulto não é fácil, concluiu num sorriso amarelo.
- Mas ainda é menos difícil que ficar velho.
‘É, deveras...’ pensou o rapaz, ficando em silêncio.
- Amor, primeiro?
Gustavo assentiu.

Após um silêncio onde só ouviam o farfalhar das cartas umas nas outras, ela fez um leque e pediu que ele escolhesse uma carta. "Esta". Isabel virou a carta e Gustavo pode ver a figura de uma barraca, parecida com aquela do parque, e duas palavras óbvias. "Barraca Cigana".
- As cartas indicam sucesso, prosperidade... êxito nos empreendimentos... Se as coisas estão ruins... como você vê... elas melhorarão em breve. Espere boas notícias... no campo amoroso.
Isabel falava fazendo pausas. Agora dinheiro. Outro leque. Outra carta. Gustavo hesitou por um pouco. Amor era coisa que ele levaria sem, de um jeito ou de outro. Mas esse assunto – sua maior necessidade atual – imposto pela cartomante era algo delicadíssimo para se tocar em um lugar que ele sabia definitivamente que não deveria estar. "Essa aqui."
Gustavo viu um desenho de uma torre, talvez isso, sendo alvejada por flechas. "Prisão". Isabel suspirou e disparou:
- Inquietação... dificuldades... fracassos... grandes perdas.
Gustavo, num suspiro, deixou escapar um ‘não devia ter vindo’.
Isabel ergueu o pescoço, encarou o rapaz de frente e lhe disse:
- Você só acredita quando as respostas são favoráveis a você?
O menino não esperava aquela incisiva questão filosófica ali. Calou-se com os olhos sobre a carta. Sentiu-se arrependido de ter entrado, independente do que a cigana podia pensar. Queria sair logo. Enfadava-lhe aquela mobília da cozinha, aquela calma de Isabel... madame Isabel... ou seja lá qual fosse o verdadeiro nome dela. Quis saber quanto ele lhe devia.
- O quanto puder, respondeu-lhe calmamente juntado as cartas, e acrescentou: O quanto quiser poder.
Gustavo tirou quatro reais do bolso, numa atitude grosseira de jogar em cima da mesa e sair procurando a porta da frente, como querendo livrar-se de tudo o que o ligara àquela senhora.
Ganhou rua. De cara fechada. Retornou o caminho de casa. Pensando muito em querer não pensar no que vivera.
Lá dentro, Isabel ia passando pela sala com a TV já desligada.
- Isabel?, chamou a velhinha, ainda na cadeira na sala.
- Senhora?
- Você acha que essas coisas que você dia a essas pessoas todas que estão vindo aqui diz acontecerão?
Isabel encostou-se à parece atrás de si e olhou a sombra da luz pública entrando pelas telhas.
- Acho que... estou quase certa que não, mamãe.
- Então por que...
- Essas pessoas têm várias perguntas e nenhuma resposta. Eu só...
- Você dá respostas erradas, num tom que poderia ser encarado como reprimenda.
- Mas se elas me procuram é por que não suportam mais essa ‘omissão do destino’ em lhes responder. ‘Paciência é virtude’, não é o que Shakespeare diz? Quem passa por aqui são impacientes completos e inveterados. E pra impacientes, mamãe, qualquer resposta – mesmo a pior – é bem melhor que o silêncio.
Deu boa noite e foi pro quarto.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial