quinta-feira, novembro 30, 2006

CORONEL DA MORTE


Um ensaio literário na categoria narrativa, campo que tenho deixado de explorar ultimamente. Espero que gostem. Abraços.

Coronel da Morte
Foto de
Sr. José Manuel Lecaros y Alcalde


Era negócio de muita prosperidade no tempo da inauguração. Seu Matuciano, de olho dos ricos dividendos que a morte poderia lhe trazer resolveu investir a venda de alguns garrotes num empreendimento funerário. A república ainda tinha inimigos e os conflitos na região eram freqüentes. “Quem morre aqui Serra da Mata não precisa mais ir comprar o ataúde fora”, orgulhava-se o empresário. Nem precisava. Nem poderia.

Criou os três filhos – do maternal ao bacharelado – com o dinheiro que a morte dos outros lhe rendia. De simples criador de gados, Matuciano passou a ser conhecido como Coronel da Morte pelos cidadãos da pequena Serra da Mata. Sua aparência era tétrica. Alto, barba cheia, olhos fundos – vindos das noites em que ficava de plantão no estabelecimento –, olhar pesaroso, presença distante...

Vendas somente à vista. Se não pudesse pagar pelo mais caro, que escolhesse o mais barato. Se não pudesse nem o mais barato, que caísse o cliente nas mãos de um agiota qualquer. Sugeria os préstimos do Barão Aguiar – um financiador muito rígido com as cobranças. Matava mais não levava calote; característica que Coronel Matuciano não se envergonhava de admirar.

Construiu um ponto comercial ao lado do Hospital que era com fim de evitar o cansaço físico dos fregueses. Republicano até o branco dos olhos, Matuciano escolheu como fantasia de sua corporação a alcunha “Funerária Presidente – Sempre Presente”.

O lucro em cima das operações comerciais passava de 130%. Não adiantava chorar, o Coronel não dava desconto. O preço é esse e ponto. Sem choro nem vela. Aliás, vela até tinha, somente choro que não. Todos se indignavam com o monopólio do Coronel; alguém até ousava dizer que era contra as leis éticas, morais e por que não religiosas.

“Coronel Matuciano, não acha impróprio um cristão – como o senhor veementemente se identifica – explorar os habitantes de Serra da Mata com seus produtos de valor exorbitante?”, questionou João Carlos, da vendinha da esquina.

Matuciano respirou fundo, coçou alguns fios da barba cheia e redargüiu:

“Sô João, seria mais correto ou mais cristão jogar terra na derradeira feição dos seus agregados?”

Rico, o Coronel da Morte outorgou que sua filha mais moça, Úrsula, iria estudar em Paris. Foi decisão de muito comentário na pacata cidade. Não havia registro de que algum Serrano tivera atravessado o Atlântico rumo a Europa. Feita as malas, as cortes de despedidas, Úrsula subiu no trem que a levaria até a Capital, de onde partiria no primeiro navio para Lisboa.

Ao cabo de três dias, a Sinhazinha estava de volta. Aconteceu que no dia em que partiria a embarcação, estourou a Grande Guerra na Europa e todo o investimento – não era pouco! – que Matuciano fizera no preparatório da excursão da caçula foram perdidos.

Contristado com a perca do dinheiro, o coronel resolveu aumentar a margem de lucro líquido. Além disso, corria na Capital certo rumor de uma grande peste que assolava os países que emergiam da Guerra.

“Virá para o Brasil, padre Magalhães?”

“Como não, Matuciano? Como não? Dizem que a contaminação já desembarca nos portos do Rio de Janeiro desde o começo do mês.”

Os olhos do coronel brilharam com tamanha boas novas.

“Deus ajude, Padre! Deus ajude!”

“Amém”.

Mal sabia o padre o que acabara de ratificar com seu ‘amém’. O capitalismo lúgubre corrente nas veias do Coronel desejou com fervor a chegada da pandemia até Serra da Mata.

Telegrafou para as Minas Gerais a fim de garantir seu estoque. Usou todo a chelpa economizada – e ainda mais os préstimos de parcelamento dos fornecedores - durante todos esses anos para estar pronto para a chegada triunfal da peste.

Algumas mortes do Rio de Janeiro, outras em Santos e a gripe alastrou-se pelo país mas não foi hábil para subir a elevação fluminense e chegar à sede do município Serra da Mata.

Como se fosse uma maldição! A saúde dos serranos estava ótima. Os idosos estavam saudáveis como os novos. Nenhum natimorto, nenhuma tragédia, nenhum perecimento natural, nenhum assassínio... e Seu Matuciano, o Coronel da Morte, via-se em maus lençóis, péssimos lençóis.
O tabelião avisava que as promissórias já iam para protesto. Os filhos deixaram a boa vida para procurar emprego na capital. E as raríssimas mortes em Serra da Mata apenas supriam as necessidades mais básicas da família.

“Alguém precisa morrer nesta cidade!”, esbravejou Matuciano na mesa de jantar certa noite.

“Não diga isso, papai. Podemos mudar de ramo...”

“O prefeito! Claro. Ninguém gosta desse almofadinha que botaram na prefeitura! Posso matar o prefeito e lucrar com a generosidade do erário!”.

Convidou o cidadão primeiro para um jantar na sua humilde residência. Os filhos e a esposa foram trancados num dos quartos para evitar interrupções.

Numa das xícaras que ofereça ao prefeito, Matuciano colocou uma fórmula de morte fulminante e sem vestígios.

“Chá de capim santo, senhor prefeito”.

“Ah, sim, Coronel! Muito obrigado”, agradeceu mordendo as pontas do bigode. “Mas eu não posso tomar sem antes agradecer a Deus.”

O prefeito colocou a xícara na mesa central ao lado da do anfitrião e levantou-se. Colocou as palmas das duas mãos para o lado e rezou dois padre-nosso e uma Ave-Maria. Apesar das arestas do remorso não estarem bem aparadas, o Coronel assassino alegrou-se com a boa lembrança do prefeito que, com ato, carimbava seu passaporte celestial. Num ímpeto, depositou sua xícara também na mesa central e acompanhou o defunto iminente na sua derradeira prece.

Diziam em coro: “Santa Maria, mãe de deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte”; (que no caso do prefeito, pensava Matuciano, seria quase a mesma coisa).

“Amém”. O ofício cansara o chefe do executivo que se largou na poltrona, apanhou a xícara e bebeu com goles generosos.

Apesar da obstrução da barba do coronel, podia-se ver um sorriso moleque com que apanhou sua xícara e fitou o prefeito para desfrutar dos últimos suspiros do seu cliente mais rentável; dando tragos discretos no seu chá.

Ao cabo de um minuto, a sobrancelha direita do coronel levantou-se. O rótulo do tópico profetizava e garantia morte fulminante. “Que diabos o prefeito não morreu!”.
“Ah! Está delicioso, coronel. Mas me diga, o que achaste da guerra?”

Guerra... guerra... guerr... gue... As palavras se confundiam no ouvido de Matuciano. O lustre da sala parecia rodar aos olhos do Coronel. Este sentiu um repuxo do lado esquerdo do corpo, um bandeamento das pernas para o lado além da boca seca e o ar faltoso.
“Coronel?! O senhor está... roxo! Coronel?!”

Está lá um remédio que cumpre o que promete. Dois minutos após confundir as xícaras em cima da mesa central e tomar o chá envenenado, endereçado ao prefeito, Seu Matuciano, o Coronel da Morte, expirou no meio da sua sala de visitas.

Depois de meses em inatividade, a Funerária Presidente ofereceu seus serviços e produtos a um freguês que, depois de tanto conseguir lucros para a companhia, encerrava a carreira – de empresário e de vivente – dando não mais que prejuízos a si mesmo.

1 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

até q enfim vc escolheu um site q esteja à altur da sua envergadura como escritor. PARABÉNS! este site é muito + bonito.

segunda-feira, dezembro 04, 2006 9:47:00 PM  

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